Alergia Alimentar e Autismo
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Introdução
As interações entre cérebro e trato digestório foram estudadas por psicólogos, psiquiatras e fisiologistas desde há muitos séculos, mais notadamente no século XIX, quando foi descrito o então denominado sistema nervoso entérico, atualmente considerado um terceiro ramo do sistema nervoso autônomo, com seus neurotransmissores e moléculas de sinalização que envolvem modulações bilaterais1,2. Nas últimas décadas, cresceu o interesse por este eixo intestino-cérebro (EIC), em que estão envolvidos os sistemas nervoso, endócrino e imunológico, em canais de comunicação múltiplos, complexos e bidirecionais1.
O papel da microbiota na função do sistema imune e o papel da disbiose (alterações quali e quantitativas da microbiota) na indução de desregulação imunológica também têm sido muito estudados nas últimas décadas3,4. Alterações da microbiota têm sido implicadas na gênese de doenças inflamatórias, alérgicas, autoimunes e câncer.
É reconhecida a interferência do padrão alimentar na composição da microbiota intestinal. O aleitamento materno representa a excelência. Uma alimentação rica em fibras (carboidratos complexos – ácidos graxos cadeia curta – SCFA/ butirato) e polifenóis (grãos, uvas, berries, cacau) está relacionada a uma microbiota de composição mais adequada, enquanto uma alimentação pobre em fibras e rica em carboidratos simples e oligossacarídeos, rica em carne vermelha e processada, rica em gorduras (total e saturadas) está relacionada à disbiose3.
Mais recentemente, a microbiota intestinal foi incluída no conceito de EIC, que passou a ser denominado eixo microbiota-intestino-cérebro.5-9. Uma comunicação complexa e bidirecional no contexto deste eixo parece apresentar um papel na homeostase gastrintestinal a partir do cérebro, assim como uma interferência do trato gastrintestinal e sua microbiota no desenvolvimento e função do sistema nervoso central, incluindo funções afetivas e cognitivas8-11. De maneira que, doenças neuro-degenerativas, transtornos psiquiátricos tais como ansiedade, depressão e transtorno do espectro autista (TEA) vêm sendo relacionados a alterações da microbiota intestinal e processo inflamatório6,8,11-13.
Relação entre Transtorno do Espectro Autista, alimentação e alergia alimentar
O TEA é composto por um grupo de condições heterogêneas que afetam o desenvolvimento neurológico e nos quais há sintomas que se manifestam precocemente e que são caracterizados por: a) deficiências na comunicação e interação social e b) padrões restritivos e repetitivos de interesses, comportamento e atividades14. A patogênese não é completamente conhecida15, admitindo-se que haja uma combinação entre diversos genes, assim como fatores epigenéticos/fatores ambientais interferindo em sua expressão16,17. Muitos estudos sobre a relevância do eixo microbiota-intestino-cérebro na fisiopatogenia dos TEA têm sido realizados15,18, assim como sobre a interferência da alimentação no funcionamento deste eixo8,19.
Um aspecto bem conhecido em pacientes com espectro autista são as alterações no hábito alimentar, sendo descritos desde aversão, seletividade até a recusa total de determinados alimentos e comportamentos obsessivos disfuncionais, além de efeitos adversos de alguns medicamentos como redução do apetite20. Existe também nestes pacientes uma associação frequente (até 91%) de sintomas gastrintestinais, como constipação, diarreia, distensão gasosa e dor abdominal21.
Prevalência elevada de manifestações alérgicas (respiratória e/ou alimentar) e autoimunes em pacientes com TEA foi descrita22-25. O tema é controverso, pois esta relação não tem sido confirmada em outros estudos e em revisões sistemáticas e metanálises26-28. Além disso, outras condições clínicas presentes na população geral também podem acometer esse grupo de pacientes, tais como, alterações de motricidade oral, distúrbios da deglutição e algumas doenças gastrintestinais.
Várias foram as hipóteses propostas para justificar sintomas gastrintestinais associados ao TEA: aumento da permeabilidade intestinal, inflamação intestinal, alterações na composição da microbiota intestinal e alergia alimentar20,21,29.
Diante deste cenário, fi ca fácil compreender o porquê de tantos estudos sobre a relação entre TEA e alimentação e também porque tantas famílias (entre 50% e 83%) utilizem dietas especiais, suplementos alimentares e fi toterápicos30,31. No entanto, muitas pesquisas sobre a eficácia de manipulações dietéticas como tratamento adicional não farmacológico, com exclusão de glúten e/ou leite de vaca, exclusão de aditivos alimentares e dieta óligo-antigênica, forneceram resultados conflitantes, inconclusivos ou efeitos clínicos modestos20,21,31-34.
Piora dos sintomas com a ingestão de produtos lácteos, chocolate, milho, açúcar, maçã e banana por conta de possível prejuízo do metabolismo de aminas fenólicas como descrito previamente35, não foi confirmada em estudos com grande número de pacientes36.
As dietas isentas de gluten e as isentas de caseína são as mais divulgadas e merecem esclarecimentos por parte de especialistas no assunto. Salomone et al37 mostraram que 13% dos pais de 1680 pacientes com TEA de 18 países europeus utilizavam dieta sem glúten ou sem caseína, com resultados variáveis.
Devemos lembrar que a exclusão do glúten implica na exclusão de todos os produtos que o contém como: trigo, aveia, cevada ou centeio e todas as farinhas, pão, biscoitos, macarrão e outros produtos. A exclusão da caseína retira da dieta derivados do leite, iogurte, queijo, manteiga, creme ou sorvete, entre outros. Portanto, este tipo de recomendação alimentar traz uma série de problemas para o cotidiano familiar.
Melhora dos sintomas do autismo com dietas de exclusão de glúten e caseína foi descrita em alguns pacientes29,38. Entretanto, revisão sistemática recente desenvolvida por um grupo de pesquisadores espanhois33 reforça as dificuldades na escolha de artigos de boa qualidade sobre o tema, mas pontua que essa prática pode atingir até 70% dos casos de autismo em algumas publicações. A pesquisa buscou artigos sobre o tema desde os anos 1970 até 2013 com a metodologia PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses) e encontrou apenas 24 artigos adequados para análise, sendo que aqueles que apresentavam efeitos positivos foram considerados de baixa qualidade de evidências e os negativos, de alta qualidade de evidências.
Dessa forma, os autores concluem que as evidências que suportam uma dieta sem glúten e/ou sem caseína para o espectro autista são limitados e de baixa qualidade33. Além disto, essas restrições alimentares podem se associar a rejeição social, estigmatização e dificuldades de socialização e integração, com potenciais efeitos adversos na doença em questão. Até que os resultados desse tipo de exclusão dietética sejam melhor definidos, os pacientes com TEA só devem ser submetidos a dietas de exclusão de glúten e/ou caseína caso haja diagnóstico (ou suspeita) de algum tipo de intolerância ou hiper- sensibilidade a alimentos33.
Lange et al31 também discutem o papel da dieta sem gluten e/ou sem caseína no tratamento do TEA. Os autores apontam que as proteínas do glúten e da caseína possuem estrutura molecular similar e são metabolizadas para gluteo- morfina (ou gliadorfina) e casomorfina, substâncias que se ligariam aos receptores opioides no SNC e mimetizariam os efeitos dos opioides do cérebro com aumento da atividade no sistema opioide endógeno, de encontro a uma das teorias para explicar os sintomas do autismo, a “Teoria do excesso de opioides”. No entanto, até o presente momento, não foi comprovada a maior permeabilidade do intestino delgado a esses compostos intestinais39, que se acreditava corroborar com essa hipótese.
Grandes limitações dos estudos sobre estas dietas de restrição têm sido descritas e incluem: ausência de definições claras dos critérios de inclusão, amostras pequenas, falhas nos controles, grande variabilidade individual dos pacientes com autismo, tempo pequeno ou muito variável de intervenção nutricional e falta de cegamento dos pais para pontuar as condições de melhora em seus filhos. Como conclusões aponta-se que as evidências dos efeitos terapêuticos das dietas sem glúten e sem caseína são fracas e que os estudos apresentam falhas metodológicas que impedem conclusões definitivas.
Certamente, processos alérgicos, quer sejam relacionados a alimentos ou não, assim como intolerância alimentar podem ocorrer em pacientes com TEA, representando fatores complicadores que devem ser abordados e tratados do mesmo modo que na população geral40. Entretanto, manipulações diéticas devem ser realizadas somente em caso de diagnóstico estabelecido de intolerância ou alergia alimentar, ou no caso de suspeita diagnóstica, pelo tempo necessário para o esclarecimento do quadro.
Diante de uma condição clínica com espectro clínico tão variado, causas não completamente conhecidas e sem tratamento efetivo e/ou curativo, como é o caso do TEA, é fácil compreender que inúmeras hipóteses fisiopatológicas sejam consideradas, o que remetem médicos, familiares e pacientes a terapêuticas alternativas que buscam, senão a cura, uma estabilização do quadro e melhoria dos sintomas. É fundamental estar atento ao surgimento de propostas terapêuticas, procurando evitar medidas que não sejam comprovadamente eficazes e que possam ser prejudiciais aos pacientes, a médio e longo prazos.